Pena & Tinta: Take a Sad Song and Make It Better


Para ler ouvindo: Hey Jude - Beatles


Eu estava em uma balada. Eu não queria estar em uma. A cacofonia de muitas pessoas no mesmo lugar e de corpos se batendo era demais pra mim, e a música alta, oh Deus! Não me leve a mal, música é uma parte inseparável de quem eu sou, mas não gosto muito quando parece que ela vai estourar meus tímpanos.
Beth tinha me arrastado até aqui, enquanto ela dançava eu ficava sentada em um dos sofás, olhando tediosamente para os corpos se mexendo na minha frente. De repente notei pelo canto de olho um cara sentando no sofá ao meu lado. Então, quando começou uma nova música e soou o inconfundível “Hey Jude” dos Beatles eu soltei um involuntário “Eu amo essa música.” Foi quando percebi que o cara ao meu lado disse exatamente a mesma coisa ao mesmo tempo. Me virei para ele e ele me olhou sorrindo. Um sorriso tão lindo e brilhante que aqueceu algo dentro de mim e não tive escolha a não ser retribuir.
 - Estou tentando descobrir porque alguém tocaria Beatles em uma balada - ele disse para mim. 
- Bom ponto - eu disse - não que eu esteja reclamando. - Ele riu e passou a mão no cabelo preto e seus olhos castanhos faiscaram. Acho que estou encrencada, pensei.
- Na verdade estou disposto a ir agradecer o DJ, acho que ele acabou de salvar minha noite - ele falou, se aproximando de mim, enquanto Paul cantava “The minute you let her under your skin Then you begin to make it better” - Meu nome é Daniel. 
- Karen. - me apresentei. Então, nos conversamos. Por duas horas a fio. E o mais estranho é que em nenhum momento ocorreram silêncios constrangedores e estranhos em que nenhum dos dois sabia o que falar. Nos realmente nos demos bem, bom pelo menos para duas pessoas que se conheciam a duas horas. E eu gostava dele. Simples assim. Onde está sua sanidade?, me questionei, ele pode ser um serial killer. Com certeza eu gostaria de ser amiga dele, mas gostaria ainda mais se ele me beijasse, continuei a meditar.
Algo me dizia que ele estava prestes a fazê-lo quando Beth apareceu do nada e me puxou. - Vamos embora agora! - ela gritou no meu ouvido. - Mas... - tentei retrucar. - O Ryan está aqui com outra garota - ela continuou a gritar - preciso sair daqui. - E sem poder sequer contestar ela me arrastou pra longe sem me dar chance de despedir de Daniel ou pegar o número dele. 
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Já faziam duas semanas que eu tinha conhecido Daniel na-balada-que-tocou-Beatles e havia pensado que não me lembraria mais dele. Afinal, eu conversei com o cara por duas horas, eu mal o conhecia. Acontece que eu não conseguia parar de pensar nele. Acho que eu estava louca.
- Você está obcecada - disse Beth. - Como eu também estaria porque aquele olhos, hmmmmm - ela abriu seu sorriso matador.
Nem me dei ao trabalho de ressaltar o fato de que não poder encontrá-lo era culpa dela por ter me arrastado de lá por causa de seu ex. Eu não estava apaixonada, é claro. Isso seria loucura, com certeza. Mas eu sentia algo toda vez que lembrava do modo como ele falava, o modo que seus olhos brilhavam e se concentravam em meu rosto. Era um aperto no peito, um sentimento bom e de infinidade, como escutar uma música que te toca fundo e acaricia a sua alma e lhe promete muitas coisas.
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Na terceira semana depois daquela festa algo realmente estranho começou a acontecer, quer dizer, além do fato de que minhas tendências obsessivas ainda me faziam pensar em Daniel.
Eu estava no ônibus indo para o trabalho, escutando música com meus fones, quando paramos no sinal. Eu encarava o lado de fora entediada quando outro ônibus parou do nosso lado. Então, no meu player começou a tocar “Hey Jude” e antes que eu pudesse mudar a música porque realmente não queria pensar em um certo alguém, eu o vi. Bem na minha frente. Ele estava sentado do ônibus parado ao lado, então como se notasse o olhar fulminante que estava recebendo ele se virou. Quando ele me olhou tive certeza que era ele porque ele teve a mesma reação que eu, os fones pendendo de suas orelhas, o olhar surpreso e urgente. Eu olhei rapidamente pra frente, pensando em descer do ônibus e o quê? Correr atrás dele? Não era uma ideia tão boa quanto parecia, então o sinal abriu e eu o vi ir embora, ainda meio desesperada e sem reação com seu olhar refletindo o meu. Enquanto isso Beatles cantavam na minha cabeça “Na na na na na na na na Hey, Jude, don't let me down You have found her now go and get her”. Vocês estão me zoando, falei mentalmente pra eles. Acho que realmente estou ficando louca, pensei, falando com pessoas mortas e vendo uma pessoa que não deveria significar nada pra mim. 
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Eu acreditaria que tudo era uma coincidência se tivesse acontecido só daquela vez. Mas quem disse que coincidências existem? Dessa vez eu estava no metrô, tínhamos parado na estação anterior a minha. Eu estava de pé em frente a porta e as pessoas começaram a passar ao meu lado para descerem, quando o som chegou até mim, os intermináveis "better, better, better,better, better, oh! Na, na na na na na, na na na, hey, Jude Na, na na na na na, na na na, hey, Jude" ecoando, com aquela voz rasgada. Porém, desta vez não fiquei tão surpresa por vê-lo porque o sentimento foi sobrepujado pelo fato de que a música vinha dele. Daniel, o cara que gostava de Beatles, estava sentando em um pequeno banco com o violão apoiado na perna, o cabelo caindo displicente pela testa, a voz maravilhosa entoando a minha canção favorita. E novamente como se alguém tivesse chamado o nome dele, ele olhou diretamente pra mim e a música cessou, seus dedos pararam de tocar e sua boca se abriu de forma diferente desta vez, me dando a certeza de que ele estava prestes a dizer algo. Fiquei ridiculamente paralisada, como uma idiota. Quando pensei em dar um passo para a plataforma e sair do trem para encontrá-lo, as portas se fecharam e eu o perdi de novo. 
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Aconteceu mais duas vezes, praticamente da mesma forma. Eu escutava a música e poderia olhar ao redor e ele estaria lá, com seus olhos encantadores e atitude tranquila e, obviamente, em uma situação inalcançável. Na quinta vez em que Hey Jude ecoou e eu olhei ao redor e o vi eu estava no carro de Beth e a música vinha do rádio. Assim que as primeiras notas começaram eu olhei pelas janelas e o vi na calçada, andando de bicicleta com o violão nas costas. 
- Para o carro - eu disse pra Beth - estou vendo ele!
- Onde? - ela olhou para todos os lados. - Na calçada - respondi urgentemente.
- Não tem lugar pra estacionar, tá lotado -  ela falou - que droga.
Ele já sumia de vista e eu soltei um sonoro “argh”. - Tem certeza que era ele? - ela perguntou. 
- Absoluta. 
- Não acho que você está mais obcecada, acho que você está louca. Vendo ele por aí.
- Beth, a merda da música está tocando bem aqui, na sua frente. E você também o viu! Como posso estar louca? Toda vez que escuta a música eu vejo ele, não faz sentido, eu sei. Mas deve significar algo! - desabafei.
- Tudo bem. Só acho que não é saudável. Você está vidrada em uma pessoa que você nem conhece, com quem mal conversou. E que supostamente vê quanto ouve uma música. Tem ideia do quão não saudável e insano é isso?
- É, eu sei. - cedi.
- Talvez devemos sair pra você conhecer alguns caras - ela sugeriu. Eu a ignorei. 
- Você sabe como eu me sinto em relação a música, não sabe? - perguntei. 
- É, eu lembro. Principalmente o quanto você ama Hey Jude, por isso estou preocupada.
- É como minha relação com essa música, sabe. Eu sinto algo estranho, uma mistura dos melhores sentimentos, como uma manhã de sol depois de uma noite fria, e a liberdade do vento passando por mim na beira de um penhasco, mas como se soubesse que estou segura. É assim quando escuto a música e quando me lembro daquela noite e quando o vejo por ai, escapando dos meus dedos. Como uma grande e misteriosa possibilidade.
- E você ama possibilidades, né? Os “e se?” Não pode deixar essa passar, não é? - disse Beth. - Bom, não - respondi simplesmente.
Beth apenas balançou a cabeça, ela sabia o quanto eu podia ser teimosa e que não adiantava discutir. Então, me lembrei  que ele tocava no metrô. E que agora a pouco o vi com o violão. Em um ato típico-da-Karen (como Beth costumava dizer), comecei a passar uma pequena parte do meu tempo livre sentada nas cadeiras de espera da estação que o tinha visto, esperando que ele aparecesse. 
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Duas semanas foi o tempo que tive que sentar lá e esperar, mas ele finalmente apareceu. Nesse tempo em nenhum momento eu ouvi Hey Jude ser tocada, mas bastou as primeiras notas serem dedilhadas e o cantor de metrô, entre centenas que passavam por aquela estação, começar a cantar os primeiros versos e eu o vi. Um trem tinha acabado de chegar e ele saiu dele carregando o seu violão, como eu supus que faria. Eu levantei em um pulo, decidida a não deixar escapá-lo dessa vez. Ele logo me viu também e não hesitou ao se vir na minha direção, com um sorriso.
- Olá, estranha - ele disse. E o seu rosto era como eu lembrava, sereno e misterioso. - Você parece ter a capacidade de ser inalcançável. - Então ele realmente tinha me visto como eu o vi e parecia querer descobrir as possibilidades também.
 - Oi - respondi. - Você também não é muito lá acessível. - A voz do cantor chegou até nos cantando "So let it out and let it in Hey, Jude, Begin You're waiting for someone to perform with", nos viramos para observá-lo e falamos ao mesmo tempo:
- A música. - Isso era de ridículo de tantas formas que eu não podia listar, mas não consegui conter o sorriso no meu rosto. 
- O que você estava escutando no ônibus naquele dia? - perguntei, eu tinha um palpite, mas ainda estava em dúvida, como se a possibilidade de ser qualquer outra música fizesse minha teoria cair por terra. Ele deu um sorriso de canto. - Acho que sabemos qual era. - ele respondeu.
Eu não sabia bem como agir agora que todas as possibilidades que tiveram início naquela noite estavam na minha frente, mas parecia que ele sabia. Dando um passo a frente ele me beijou, enquanto as pessoas passavam ao nosso redor, distraídas em suas preocupações e a voz do cantor ecoava "Take a sad song and make it better Remember to let her under your skin Then you'll begin to make it better".

Pena & Tinta é um projeto de escrita criativa com o objetivo de criar textos (crônicas, contos, poesias, relatos pessoais etc) mensalmente em cima de um tema predeterminado. O tema de julho foi Música, e se você quiser participar, é só acessar o grupo no Facebook



2 comentários:

  1. Que música linda que você escolheu para servir de inspiração pra sua história, Debs <3 Não acredito que você ainda cogitou não postar isso!! Quero te bater!! Mentira, nem quero. Não depois do que li aqui. Tá lindo, cheio de sentimento. E o que me fez gostar ainda mais foi o fato de eu super acreditar nessa coisa de destino, sabe? De gente que aparece na hora certa, de pequenas "coincidências" que nos levam para alguém ou para algum lugar. De músicas que falam por nós, que nos ligam a pessoas, a momentos, a lugares. De histórias que começam e se constroem de formas absurdas e imagináveis. Amei, amei! Você sempre arrasa!
    Beijo

    www.blogrefugio.com

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  2. QUE LINDO QUE LINDO E QUE MÚSICA DEBS ! Me identifiquei totalmente com o texto :o Amei demais, sério. ♥ ♥ ♥ ♥

    www.tantoscaminhoselugares.com.br

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